Inspiração
O livro do Eclesiastes
adverte: “Um último aviso: escrever livros e mais livros não tem limite. E o
muito estudo é enfado da carne...”. Não obedeci. Escrevi muitos livros. É o
jeito que tenho de brincar. Livros são brinquedos para o pensamento. De todos os
que escrevi, acho que o que mais amo é A
menina e o pássaro encantado. Escrevi para transformar uma dor em beleza.
Eu ia me ausentar do Brasil por um período longo e a minha filha de quatro
anos, a Raquel, estava inconsolável. As crianças têm uma sensibilidade
especial. Sabem que toda ausência passageira é metáfora de uma ausência
definitiva. Ela sofria e eu sofria com o sofrimento dela. Aí, de repente, veio
a inspiração. Inspiração é quando a gente não sabe de onde a ideia vem. Na
ciência é o contrário: é preciso explicar o caminho que se tomou para chegar à
ideia. É esse caminho que tem o nome de método. Seguindo o mesmo caminho,
qualquer outro cientista poderá chegar à mesma ideia. Na literatura é o
contrário: o escritor não sabe de onde as ideias vêm. Portanto não se pode
ensinar o caminho. Veja como Fernando Pessoa descreveu essa experiência: “Às
vezes tenho ideias felizes, ideias subitamente felizes... Depois de escrever,
leio... Por que escrevi isso? Onde fui buscar isso? De onde me veio isso? Isto
é melhor do que eu...”. A ciência é a caça de um pássaro definido de antemão
que, depois de apanhado, será preso numa gaiola de palavras. Mas a inspiração
não é uma caça. A inspiração chega em momentos raros de distração. Picasso
explicou o seu “método”: “Eu não procuro. Eu encontro...”. Ou seja, a
inspiração não tem método: o pássaro pousa no nosso ombro, sem que o tivéssemos
procurado e apenas nos espantamos de que ele seja assim tão bonito... Foi assim
que me apareceu a estória A menina e o
pássaro encantado. Nela, uma menina que não suportava a saudade, para
impedir que seu pássaro voasse tratou de prendê-lo numa gaiola. Resultado: o
pássaro encantado deixou de ser encantado; perdeu as cores e esqueceu o canto. O
pássaro só é encantado quando é livre. O sentido original da estória era claro:
era uma estória para a minha filha e para mim cujo objetivo era transformar a
dor em beleza. Mas aí aconteceu o inesperado: depois de publicado, os leitores
passaram a ver sentidos novos que eu não havia visto: o livro começou a ser
usado por terapeutas para lidar com casais em que cada um tentava engaiolar o
outro. E estavam certos. Foi então que um amigo me disse: “Que linda estória
você escreveu sobre Deus!”. Espantei-me. “Sobre Deus? Qual?” “A menina e o pássaro encantado”, ele
respondeu. Contestei: “Mas a estória não é sobre Deus...”. Ao que ele me disse:
“Pois eu pensei que o pássaro encantado era Deus, que as religiões aprisionam
em gaiolas...”. Pode também ser... É impossível engaiolar o sentido.
(ALVES,
Rubem. Ostra feliz não faz pérola.
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.)
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Há algum tempo, um médico e terapeuta dizia em uma de suas palestras que dentre os itens imprescindíveis à felicidade deveria ser incluída a pergunta: "Qual será a próxima festa?".
Essa provocação ficou ali, num daqueles cantinhos da minha mente, e de vez em quando pisca chamando a atenção de novo. E sabe de uma coisa? A cada dia que passa concordo mais com ele. Os dias vão se atropelando, as responsabilidades aumentando e consumindo nosso tempo, e quando a gente vê... a semana, o mês e até o ano foi embora sem momentos realmente marcantes, sem aquelas "perdas" de tempo tão necessárias, que valem mais do que qualquer outra coisa.
Pegando um gancho nessa tal pergunta de que falava o Doutor, penso que a agenda da nossa vida deveria ser guiada pelos fins de semana, e não pelos dias comuns. Isso mesmo. Datas. Compromissos. Compromisso com a alegria, com o encontro com a leveza, com o diferente, com o que nos faz bem; encontro com o calor e a energia daqueles lugares e pessoas que dão sabor à vida.
Da correria da semana, das urgências e pendências, disso já sabemos, e nos esforçamos para realizar o que é necessário da melhor forma possível. Mas os finais de semana, ah, os fins de semana!... Isso é assunto sério. (Já para a agenda!)
A
Paixão de Bastián
As paixões
humanas são um mistério, e com as crianças acontece a mesma coisa que com os
adultos. Aqueles que se deixam levar por elas não podem explicá-las, e os que
não as viveram não podem compreendê-las. Alguns homens arriscam a vida para
escalar uma montanha. Ninguém, nem mesmo eles, pode explicar porque o fazem. Outros
se desgraçam para conquistar o coração de uma pessoa que não quer nada com
eles. Outros se destroem por não saber resistir aos prazeres da mesa... ou da
bebida. Alguns perdem tudo o que têm em um jogo de azar ou sacrificam tudo a
uma ideia fixa que jamais poderá se realizar. Alguns acreditam que só poderão
ser felizes em um lugar diferente e percorrem o mundo inteiro. E ainda outros
não descansam até se tornarem poderosos. Em resumo: existem tantas paixões
quanto seres humanos.
A
paixão de Bastián Baltasar Bux eram os livros.
Quem
não tiver passado nunca tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas
ardendo e o cabelo caído no rosto, lendo e lendo, esquecido do mundo e sem
perceber que estava com fome ou com frio...
Quem
nunca tiver lido à luz de uma lanterna, embaixo das cobertas, porque papai,
mamãe ou alguma outra pessoa solícita apagou a luz com o argumento bem
intencionado de que tem de dormir, porque amanhã precisa levantar bem cedinho...
Quem
nunca tiver chorado aberta ou dissimuladamente lágrimas amargas porque uma
história maravilhosa acabou e era preciso se despedir dos personagens com os
quais tinha corrido tantas aventuras, que amava e admirava, pelo destino dos
quais temera e rezara e sem cuja companhia a vida pareceria vazia e sem
sentido...
Quem
não conhecer tudo isso por experiência própria, provavelmente não poderá
compreender o que Bastían fez então.
(ENDE, M. La historia interminable. Madrid:
Alfaguara, 1982. In: SOLÉ, Isabel. Estratégias
de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 12.)