Edleuza

Há pessoas que enfrentam sem medo
chuva intensa em noite escura
trânsito em cidade grande
estado civil sem status
ficar fora do padrão
aluguel, conta, fatura
turbulência em avião

Tem gente que tira de letra

pé sem meia em noite fria
rato, sapo, barata
conversar com gente estranha
aniversário sem festa, sem nada...
dirigir sozinha de madrugada

Existem aquelas que não se assustam mesmo

com fogos, cirurgia, curativo, injeção
plateia, palco, palestra
encenar, falar em público
multidão

Mas, às vezes,

o tato perde a certeza
o corpo esquece a calma
o abismo se lança inteiro
pesado, profundo
contra o peito
contra a alma
quando se tem que enfrentar sentimentos.
Há de se ter muita, muita CORAGEM
para ensinar um coração que ainda não aprendeu
a conviver com o intangível.

2019 promete!











Edleuza

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Inspiração

O livro do Eclesiastes adverte: “Um último aviso: escrever livros e mais livros não tem limite. E o muito estudo é enfado da carne...”. Não obedeci. Escrevi muitos livros. É o jeito que tenho de brincar. Livros são brinquedos para o pensamento. De todos os que escrevi, acho que o que mais amo é A menina e o pássaro encantado. Escrevi para transformar uma dor em beleza. Eu ia me ausentar do Brasil por um período longo e a minha filha de quatro anos, a Raquel, estava inconsolável. As crianças têm uma sensibilidade especial. Sabem que toda ausência passageira é metáfora de uma ausência definitiva. Ela sofria e eu sofria com o sofrimento dela. Aí, de repente, veio a inspiração. Inspiração é quando a gente não sabe de onde a ideia vem. Na ciência é o contrário: é preciso explicar o caminho que se tomou para chegar à ideia. É esse caminho que tem o nome de método. Seguindo o mesmo caminho, qualquer outro cientista poderá chegar à mesma ideia. Na literatura é o contrário: o escritor não sabe de onde as ideias vêm. Portanto não se pode ensinar o caminho. Veja como Fernando Pessoa descreveu essa experiência: “Às vezes tenho ideias felizes, ideias subitamente felizes... Depois de escrever, leio... Por que escrevi isso? Onde fui buscar isso? De onde me veio isso? Isto é melhor do que eu...”. A ciência é a caça de um pássaro definido de antemão que, depois de apanhado, será preso numa gaiola de palavras. Mas a inspiração não é uma caça. A inspiração chega em momentos raros de distração. Picasso explicou o seu “método”: “Eu não procuro. Eu encontro...”. Ou seja, a inspiração não tem método: o pássaro pousa no nosso ombro, sem que o tivéssemos procurado e apenas nos espantamos de que ele seja assim tão bonito... Foi assim que me apareceu a estória A menina e o pássaro encantado. Nela, uma menina que não suportava a saudade, para impedir que seu pássaro voasse tratou de prendê-lo numa gaiola. Resultado: o pássaro encantado deixou de ser encantado; perdeu as cores e esqueceu o canto. O pássaro só é encantado quando é livre. O sentido original da estória era claro: era uma estória para a minha filha e para mim cujo objetivo era transformar a dor em beleza. Mas aí aconteceu o inesperado: depois de publicado, os leitores passaram a ver sentidos novos que eu não havia visto: o livro começou a ser usado por terapeutas para lidar com casais em que cada um tentava engaiolar o outro. E estavam certos. Foi então que um amigo me disse: “Que linda estória você escreveu sobre Deus!”. Espantei-me. “Sobre Deus? Qual?” “A menina e o pássaro encantado”, ele respondeu. Contestei: “Mas a estória não é sobre Deus...”. Ao que ele me disse: “Pois eu pensei que o pássaro encantado era Deus, que as religiões aprisionam em gaiolas...”. Pode também ser... É impossível engaiolar o sentido.

(ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.)


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O Instante Antes do Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
O instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

Mia Couto, in 'Tradutor de Chuvas'

(Que texto lindo!!!!)

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Há algum tempo, um médico e terapeuta dizia em uma de suas palestras que dentre os itens imprescindíveis à felicidade deveria ser incluída a pergunta: "Qual será a próxima festa?". 

Essa provocação ficou ali, num daqueles cantinhos da minha mente, e de vez em quando pisca chamando a atenção de novo. E sabe de uma coisa? A cada dia que passa concordo mais com ele. Os dias vão se atropelando, as responsabilidades aumentando e consumindo nosso tempo, e quando a gente vê... a semana, o mês e até o ano foi embora sem momentos realmente marcantes, sem aquelas "perdas" de tempo tão necessárias, que valem mais do que qualquer outra coisa.

Pegando um gancho nessa tal pergunta de que falava o Doutor, penso que a agenda da nossa vida  deveria ser guiada pelos fins de semana, e não pelos dias comuns. Isso mesmo. Datas. Compromissos. Compromisso com a alegria, com o encontro com a leveza, com o diferente, com o que nos faz bem; encontro com o calor e a energia daqueles lugares e pessoas que dão sabor à vida. 

Da correria da semana, das urgências e pendências, disso já sabemos, e nos esforçamos para realizar o que é necessário da melhor forma possível. Mas os finais de semana, ah, os fins de semana!... Isso é assunto sério. (Já para a agenda!) 

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A Paixão de Bastián

As paixões humanas são um mistério, e com as crianças acontece a mesma coisa que com os adultos. Aqueles que se deixam levar por elas não podem explicá-las, e os que não as viveram não podem compreendê-las. Alguns homens arriscam a vida para escalar uma montanha. Ninguém, nem mesmo eles, pode explicar porque o fazem. Outros se desgraçam para conquistar o coração de uma pessoa que não quer nada com eles. Outros se destroem por não saber resistir aos prazeres da mesa... ou da bebida. Alguns perdem tudo o que têm em um jogo de azar ou sacrificam tudo a uma ideia fixa que jamais poderá se realizar. Alguns acreditam que só poderão ser felizes em um lugar diferente e percorrem o mundo inteiro. E ainda outros não descansam até se tornarem poderosos. Em resumo: existem tantas paixões quanto seres humanos.

A paixão de Bastián Baltasar Bux eram os livros.

Quem não tiver passado nunca tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas ardendo e o cabelo caído no rosto, lendo e lendo, esquecido do mundo e sem perceber que estava com fome ou com frio...

Quem nunca tiver lido à luz de uma lanterna, embaixo das cobertas, porque papai, mamãe ou alguma outra pessoa solícita apagou a luz com o argumento bem intencionado de que tem de dormir, porque amanhã precisa levantar bem cedinho...

Quem nunca tiver chorado aberta ou dissimuladamente lágrimas amargas porque uma história maravilhosa acabou e era preciso se despedir dos personagens com os quais tinha corrido tantas aventuras, que amava e admirava, pelo destino dos quais temera e rezara e sem cuja companhia a vida pareceria vazia e sem sentido...

Quem não conhecer tudo isso por experiência própria, provavelmente não poderá compreender o que Bastían fez então.

(ENDE, M. La historia interminable. Madrid: Alfaguara, 1982. In: SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 12.)

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